
Há momentos na vida em que se deve contemplar o bom jornalismo e procurar divulgá-lo. A entrevista de Cadel Evans ao jornal L’Équipe encaixa-se nessa categoria restrita e permite-nos conhecer um pouco melhor a vida do campeão do Tour.
O percurso do australiano tem tido baixo e altos. O facto de os baixos virem primeiro é quase cronológico, já que se trata de um homem que só se afirmou no pelotão para lá dos 30 anos.
No entanto, o amadurecimento competitivo tardio foi algo que nunca tirou o sono a Evans: “Com a idade aprendi a não entrar em pânico. Quando era jovem tinha crises de ansiedade que me faziam perder as minhas capacidades. Vivi isso no BTT, antes de uma grande prova, e até quando tive a camisola rosa no Giro perante a surpresa geral, em 2002”.
As oscilações de carreira, o acumular de lesões e azares quebram até o espírito mais resistente. A vitória no Tour espantou os fantasmas: “Durante seis anos perguntaram-me se podia ganhar o Tour. Eu próprio colocava essa pergunta. No dia seguinte à chegada do Tour estava sozinho na casa de banho do hotel, olhei-me ao espelho e finalmente obtive a resposta a essa questão que começava a perturbar a minha vida. Esse momento foi a sensação mais bela do mundo”.
O PASSADO POUCO CONVENCIONAL
Cresceu entre os aborígenes e isolado do mundo. “A minha história por si própria é diferente, venho de um país novo, tive experiências na minha infância que poucas pessoas conheceram e aprendi o meu trabalho fazendo BTT”.
Evans é diferente, mas de forma natural. “Nunca trabalhei a imagem. Vi ciclistas que em público demonstravam uma imagem diferente do privado”, ressalva.
Quando lhe perguntam se gosta dessa imagem de ciclista atípico, a resposta leva o ciclista da BMC a recuar no tempo: “Sim, porque sou naturalmente diferente. Passei os três primeiros anos de vida numa aldeia aborígene de 90 habitantes, as condições eram complicadas por causa do clima tropical, extremamente quente no Verão e muito chuvoso não Inverno. Mas os meus pais quiseram ir ainda mais longe neste tipo de vida marginal e compraram uma parcela de 80 mil metros quadrados em plena floresta selvagem. O meu pai abateu árvores para construir o quintal, não tínhamos telefone, eletricidade nem televisão, a aldeia mais próxima estava a 20 km. Foi um grande momento da minha vida. Ainda hoje estou em contacto com os vizinhos que ficaram lá”.
FALAR SOZINHO PELO ISOLAMENTO DENTRO DA EQUIPE
Jan Ullrich, Lance Armstrong e Cadel Evans têm algo em comum além de serem grandes campeões. Todos tiveram uma relação desfuncional ou inexistente com o pai. “Quando li a biografia do Lance vi algumas semelhanças. É de facto estranho. Como explicar no que uma pessoa se torna sem a presença do pai? Ainda revia o meu de vez em quando, muito raramente, não o suficiente para que ele tenha tido alguma influência na minha vida, ainda menos na carreira. Talvez seja essa a razão: se calhar um pai pressiona demasiado um filho ao ponto de inibi-lo, enquanto a mãe é mais compreensiva e a minha teve este efeito sobre mim”.
O isolamento geográfico, a introspeção e uma personalidade já de si pouco empática ajudaram a criar uma imagem de reclusão mesmo dentro das equipes por onde passou.
A propósito do tema, recorda o L’Équipe a complicada integração de Evans no pelotão. Alguns colegas mais indiscretos ventilaram a informação de que o Aussie costumava falar sozinho à noite, no quarto. “Sim, mas quando ninguém fala consigo durante três dias já não sabe com quem falar. Estava isolado, mas tive a minha parte de responsabilidade porque sou reservado. Mas poucos fizeram realmente um esforço para me conhecer, por isso falava sozinho. Ninguém me respondia, mas pelo menos, perante a imagem que me transmitiu o espelho da casa de banho eu tinha a sensação de existir”.
Numa entrevista em que o homem se sobrepôs ao ciclista, Cadel Evans deu-se a conhecer de uma forma que poucos atletas o fazem. Mais uma barreira ultrapassada para um atleta habitualmente circunspeto.
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